
O tempo. Matinas -- antes do raiar do Sol, hora de oração e leituras de textos bíblicos e hagiográficos.
O espaço. A referência a um claustro, a capitulares e a um coro, indica estarmos numa casa religiosa, obviamente sem surpresa, atendendo ao título do romance. Uma ligação directa da alcova à biblioteca, pode indiciar um aposento privilegiado para quem tenha hábitos, necessidades e práticas do foro intelectual.
Personagem. Luciano, habita no recinto, no qual parece deambular à vontade. Sabemo-lo, quantos lemos o romance, tratar-se de pessoa decidida e com ideias firmes. O «gesto largo» com que abre as janelas e aspira o ar da rua a plenos pulmões são gestos e atitudes que prenunciam a sua assertividade.
Impressões. o som (a sineta que tangia); a visualização do peso do lambrequim; o ar madrugador e refrescante que Luciano aspira a plenos pulmões.
O modo. As referências ao brocardo revela a permanência da estética naturalista, com todas as minúcias descritivas.
5. Espírito e carne
Continuar: «Entretanto iniciavam-se na Sé as obras de restauração.» Início do cap. III, pp. 41-78 da minha edição.
As obras põem a Sé em polvorosa, desagradam aos mais velhos e a própria Helena de Monforte fica angustiada ao ver a capela de família intervencionada. Em defesa daquele «ateu», daquele «doido», daquele «Átila de camartelo» vem o padre Anselmo, o jovem musicólogo. Num domingo, durante a missa, a condessinha tem uma espécie de revelação, que a leva a questionar a sua desconfiança ou má-vontade para com o trabalho de Luciano:
«Nesse domingo, porém, uma surpresa durante a missa causara-lhe estranha emoção. Tinham acabado de aparelhar a rosácea do cruzilhão norte. Desarmado o andaime e o tapume envolvente, a admirável rosa de pedra reabria, inteiramente nova, no fino talhe românico, com o desabrochamento radial das nervuras emoldurando pétalas de luz. Maria Helena erguera os olhos e ficara em êxtase deslumbrada. Como aquilo fora não sabia. Donde a linda rosa viera, ignorava-o. Como ela abrira lá no alto, mistério. mas lá estava, a mágica túlipa esplendorosa, fresca e vicejante, reverberando na sombra doce da nave as palpitações multicores do seu coração incendiado.»
Será quando visita furtivamente, na companhia do padre Anselmo, que fala demais, a sua capela, consagrada a Santa Cecília, já objecto de restauro, porém inacabado, estando por isso o acesso vedado a todos -- será nessa ocasião que, ainda sem o saber (nem o leitor, de resto), Helena de Monforte se apaixona por Luciano. O narrador de Manuel Ribeiro dá-nos isso muito bem:
«Polvilham o recinto camadas de poeira branca e detritos finos de calcário. Na restauração fora refeita toda a ábside da capela. [...] A delicadeza alígera da fenestragem sobressaía no fino talhe arredondado de molduras e nessa beleza inenarrável, verdadeiramente religiosa, do arco que foge à curva rígida e se quebra para a tocar furtivamente, na graça dum beijo casto trocado a medo por dois amantes. / O rubor incendiara o rosto de maria Helena. Aquilo era por ela e para ela...»
É interessantíssima a forma tão estilisticamente dúctil com que o narrador discorre sobre os pormenores técnicos e decorativos do edifício, tornando uma matéria árida, porque técnica, num discurso fluente; e também a erudição e o deleite nas referências à patrística e à história monástica. Não é de admirar que a conversão estivesse a germinar e a desenvolver-se em Manuel Ribeiro, um ano antes de ser um dos cofundadores do PCP.
O único senão deste capítulo para o leitor comum é a longa explanação da história do monaquismo e dentro dela da Ordem de São Bento, pelo simpática tagarelice do padre Anselmo, levando-o a perder as Completas. Capítulo que termina um pouco precipitadamente com a descrição física de Helena e uma flechada cupidinosa bem desferida:
«Luciano viu-a marchar no lajedo, alta e tenra, espiritual e fina, numa harmonia de linhas que traía a raça. O busto evasava-se-lhe em curva harmoniosa de ânfora a que dava deliciosa frescura o corpete de cetim claro dobrando-se em gola no colo, sob o casaco tailleur, numa graça vegetal de gamopétala. E, despedindo-se dos seus amigos, a fidalga já no trem, sublinhou um último cumprimento a Luciano, num tão eloquente sorriso, que o artista sentiu a alma fundir-se-lhe de ventura...»
***
6. Um ateu a caminho da conversão
Um capítulo um pouco extenso, mas delicioso, em que sobressaem alguns aspectos muito relevantes. Comecemos por um parágrafo em que a descrição das obras na Sé nos dá a ideia de um trabalho num organismo vivo -- ou pelo menos não inanimado.
«Renascia a catedral. Todo o navio arfava no ritmo da vida. Mais do que nunca, a Sé parecia animar-se. A sofreguidão dos trabalhos, a azáfama das obras, a vibratilidade que parecia terem adquirido as estruturas íntimas sob o influxo restaurador, infundia tudo o sentimento da força a agir, do sangue a circular. A catedral vivia, palpitava, sentia, e isto revelava-se na epiderme nova dos silhares, nos tufos arbóreos das nervuras, nessa inesperada primavera da pedra que desabrochava pelos capitéis uma flora estilizada. A catedral vivia. E que admirar era que as catedrais vivessem? Não formavam o substractum de tanta vida decomposta, o resíduo dos seus artistas que até os corpos lhes haviam dado? Elas tinham, de facto, surgido das entranhas da terra, argamassadas com o seu sangue e caboucadas com os seus ossos, assim como as ilhas madrepóricas, que sobem do fundo dos oceano feitas dos cadáveres dos seus artífices...»
O comunista e antigo anarco-sindicalista não esquece o factor trabalho, aqui iluminado pelo entusiasmo que o narrador empresta ao afã operário, como se trabalhadores e edifício participassem duma mesma célula.
Um outro aspecto, o da atracção que se vai desvelando entre Luciano e Maria Helena, esta que, transpondo inopinadamente o limiar da capela de família, vê-se retratada num capitel que aquele esculpia, com Luciano «só deseja[ndo] que o sorvesse o chão, que a catedral o tragasse.»:
«[...] uma deliciosa e adorável cabeça de mulher, reproduzida da máscara e de que ressaltava em medalhão a face, surgia, graciosa e grave, a expressão suave e melancólica, um ar antigo de santa. Reparando bem, parecia que a folhagem não era mais que uma imperceptível sequência da sua cabeleira ondulada que se bipartia na testa e inflectia delicadamente aos lados, até surgir gradualmente, na grinalda de miudinhas folhas.»
Também para Luciano se dava a osmose do edifício com a vida, tal como sucedia com os trabalhadores. E aqui paixão e vida entranhavam-se: «Ele amava, amava Maria Helena nas formas artísticas da catedral.»
Mercê do seu trabalho diuturno e pelo facto de residir no sopé da catedral, e pela vontade de se aproximar da condessinha, percebendo-a e tentando decifrá-la na sua religiosidade, começa a interessar-se pelos ofícios litúrgicos. E é então que estudando, intuindo, compreendendo, tendo como (inconsciente?) coadjuvante o jovem padre Anselmo, que Luciano «começa a resvalar no pendor místico da religião». E as formas, os cânticos, os símbolos -- o «admirável jardim [...] litúrgico» -- começam na sua harmonia a interessá-lo, a conquistá-lo, como de resto haviam já conquistado o narrador, como se pode ver neste parágrafo:
«A álea [desse jardim] começava no Advento em fundos dominantes de violeta donde sobressaíam de longe em longe, os grandes lírios alvos dos confessores, as castas rosas brancas das virgens, os cactos rubros dos apóstolos e dos mártires. No tempo do Natal, tudo se decorava duma brancura láctea, tudo era branco, até a própria vigília da Epifania. Depois a paisagem reverdecia. Em breve, porém, o horizonte arroxeava-se, e a septuagésima passava violácea entre os maciços de goivos de Quinta-feira maior e a cinza trágica de Sexta-feira santa. Mas já no tempo pascal, a paisagem desentenebrecia-se, os tons amaciavam e o branco criador surgia de novo, galopava, polvilhava tudo de penas alvas. E outra vez reapareciam, do Pentecostes e o Advento, as largas manchas verdes, donde sobressaíam, de longe em longe, os grande lírios alvos dos confessores, as rosas brancas das virgens e os cactos rubros dos apóstolos e dos mártires...»
Se o ofício completo da missa seduz Luciano como «uma refinada condensação de arte», o acto de orar apresenta-se-lhe como «atitude estética empolgante», sentimento reforçado pelo misticismo do seu interlocutor, o padre Anselmo, para quem a oração periódica diária se reveste de uma indizível transcendência: «E há na vida ocupação mais digna, trabalho de mais apreço, de maior elevação espiritual que este culto ininterrupto ao grande Mistério que envolve o universo e a que só é indiferente a mais grosseira materialidade?»
Fosse pelo amor, fosse pela estética, fosse, ainda, por um preenchimento de um vazio interior, Luciano parece resvalar a passos largos para dentro da fé. E quando o jovem padre começa a explicar a Liturgia das Horas, com os cânticos que lhe pertencem, ao arrebatamento da música associada ao ofício divino, puro esplendor monacal, então é já o narrador que se vislumbra tocado pela Graça:
«-- Matinas é o cântico da noite, a hora que simboliza a adoração dos anjos e dos pastores a Jesus recém-nascido, e o início da sua Paixão na dolorosa noite do Horto. Luzem no céu as estrela e nem prenúncios de alva assomem no oriente. O invitatório e o salmo Venite exsultemus com que ele alterna em ritornelo, a seguir à doxologia, incitam os fiéis a que louvem Deus na alegoria dessa exortação dos anjos aos pastores ma messiânica noite redentora -- e são o prólogo dos três Nocturnos que chegam rolantes como batarias, guarda avançada dos salmos que vão desfilar pelo dia adiante. Apagados os ecos das três vigílias, que simbolizam as três vezes que Jesus se afastou dos discípulos para orar, quando foi preso, e as três etapas da lei religiosa -- patriarcal, mosaica e cristã, -- eleva-se aos domingos e nas festas de rito simples, o apoteótico cântico ambrosiano, esse rutilante Te Deum laudamus, que nimba o remate da hora com os primeiros raios de sol nascente.»
Recorde-se que Manuel Ribeiro dirigia o jornal bolchevique Bandeira Vermelha. Se falamos de um ateu -- ou talvez agnóstico, distinção a fazer-se -- a caminho da conversão, não podemos esquecer também a circunstância de Manuel Ribeiro, ex-anarco-sindicalista, comunista bolchevique. Que a conversão já lá anda, parece quase evidente, salvo melhor opinião.